quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Queria sofrer de amor. Pôr musicas tristes a tocar e chorar, chorar...

Para quê cansar a caneta quando alguém já o fez? E tão bem.
Fiquem com Miguel Esteves Cardoso e o seu "Elogio do amor".


“Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e
da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

MEC

terça-feira, 22 de setembro de 2009

in



- Não compreendo a vingança - disse ele -, nunca a senti. E não escrevo sobre ela.

- E Emma Zunz?
- Sim, mas é o único caso. Mas a história foi-me dada e eu nem acho que seja muito boa.

- Então, não aprova a vingança por algo que tenha sido feito contra si?
- A vingança não altera o que foi feito. Nem o perdão. Vingança e perdão são irrelevantes.
- Que se pode fazer, então?
- Esquecer - disse Borges -, isso é tudo quanto se pode fazer. Quando me fazem mal, finjo que aconteceu há muito tempo e a outra pessoa qualquer.
- E funciona?
- Mais ou menos - mostrou os seus dentes amarelos -, mais para menos do que para mais.



Eu sabia que havia uma razão para ignorar o sentimento de expectativa defraudada e não desistir deste livro. O remate da viagem está a ser todo muito bom (guardou o melhor para o fim, não foi, senhor Theroux?), mas só esta passagem já valeria a pena a persistência.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Luz ao fundo de mim

Foto de Warren du Preez & Nick Thornton-Jones


Quando alguém te diz "escreves bem, de certeza" sem nunca ter lido nada teu, sabes que tens qualquer coisa em ti.

Pode não ser único, extraordinário, impressionante, mas assegura-te de que não és uma pessoa baça, lisa, vazia. Sabes que, num dia bom, debaixo da luz certa, brilhas.

Brilhas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Who the fuck is David Motta?

Ele chegou vestido de preto (um olhar mais atento apercebe-se de que a roupa é invulgar) e chinelos. Disse: "já venho maquilhado. Só preciso é de calçar os sapatos e de me arranjar". Sorriso aberto, um tom de voz educado - cumprimentou quem com ele se cruzou e não olhou ninguém de alto a baixo. Sentou-se no sofá da sala de produção, disse "o meu cabelo deve estar terrível", calçou uns sapatos de mulher, pretos e de vertiginoso salto agulha. Concentrado em si, calçou as burlescas luvas pretas rendadas e colocou, um por um, escolhidos, e bem a propósito, a dedo, vários anéis. Bastava olhar de relance - o brilho mostrava que não eram bijuteria plástica.

Chegaram os outros, estes já todos compostos. Filipe, rapaz moreno e alto, bonito, apesar do ar ainda adolescente (ou talvez por isso mesmo) vinha de calças amarelas e a mesma simpatia e educação. Coco, portuguesa e irlandesa, de vestido preto, curto a deixar ver as pernas de quem foi modelo, enfeitado a disfarçar a barriga de quem já não é. Ela sim, adolescente, com brilho nos olhos, sorrisos despropositados, o cabelo muito longo e muito loiro, sempre despenteado. Havia mais: a menina morena de cabelo inclinado para um dos lados, com duas cruzes de tape preta sobre os mamilos, muitos colares de pérolas e um casaquinho preto que tirou só quando estava fora do ar ("se a minha mãe me visse assim"); um rapaz muito magro e alto, de fato prateado, tão parecido àquele das paredes ("mas o Marco Horácio compra os dele em Londres; nós compramos nos chineses") e uma máscara que, descobre-se mais tarde, esconde uma cara bonita; perucas, óculos grandes e extravagantes, um leque de penas que estive quase a levar para casa, saltos altos em pés de homem.

Entraram no estúdio, sentaram-se no sofá branco e falaram. Do grupo que criaram e a quem chamaram MAD Subculture. Das festas loucas que organizam. Das festas mil vezes mais loucas a que vão em Londres, Nova Iorque, etc. Do merchandising que criaram para o grupo. Fala o David de um estilista português que ninguém conhece. Fala o Filipe do prémio que ganhou, do mestrado que quer tirar. Fala a Coco, misturando inglês e português, do castigo que os pais lhe impuseram - ficar com eles na Madeira - e apela a que a deixem voltar para Lisboa. Desvendam que querem animar Lisboa, incentivar as pessoas a vestir roupas loucas, criar uma subcultura inspirada no exagero, na extravagância.

Em volta, percorrendo o estúdio, ouve-se: "olha-me aquele paneleiro; olha-me a gaja que não tem cuecas de certeza; olha-me aquele atrasado mental de saltos altos". Como ouve David Motta de cada vez que sai à rua vestido de forma extravagante - normalmente com coisas como usam as estrelas que tanto admiramos "lá fora". E eu (e, felizmente, não só eu), a espumar de raiva com tanta mente fechada, com tanto pensamento parado no século XIV, com tanta pedra em vez de cérebro.



Os miúdos organizam festas, criam blogues, criam roupa - fútil, dizem. Pergunto: e vocês, aí sentados, vocês gritam 'paneleiro' a qualquer cor mais viva, criam o quê? Raízes no sofá? Quantos miúdos daquela idade, agarrados ao Hi5 e à playstation, fazem coisas saídas das suas cabeças, sejam elas o que forem?

Pensamos no Andy Warhol na sua Factory e quantas vezes ele ouviu "olha-me este panisgas a pintar e filmar merdas que não interessam a ninguém! vai mas é trabalhar!". Mas a verdade é que são estas pessoas que ficam na memória - as pessoas diferentes. Ainda vivemos num mundinho cinzento ou, para ser mais exacta, num país cinzento, em que se quer que toda a gente vista de jeans, que as meninas só se ponham em cima de saltos em ocasiões especiais, que se seja heterossexual, que se tenha um trabalho normal, que toda a gente se case e tenha filhos, que só se saia à noite até uma certa idade - principalmente, que não se dê nas vistas.

Eu chamar-lhe-ia mente fechada.

Perguntaram aos "burrinhos, fúteis, maricas" David, ao Filipe e à Coco: "como é que uma pessoa tem de se vestir para ir a uma festa vossa? por exemplo, a Dona Helena podia entrar?" [para quem não sabe, a Dona Helena é uma senhora da limpeza, já entradota, que anda de bata verde]. Ao que eles responderam: "porque não? o que nós defendemos é que cada pessoa vista o que quer, calce o que quer, seja como quer".

http://www.madsubculture.com/
http://escarradordedavidmotta.blogspot.com/