segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Olha que te ponho pimenta na língua, Zé

Quem me conhece sabe que sou queirosiana na mão direita e saramaguiana na mão esquerda. Depois do Eça, José Saramago foi a melhor coisa que aconteceu à literatura portuguesa, perdão, à literatura do último século. Isto não significa que goste muito do senhor Zé (que, a bem dizer, não conheço de parte nenhuma) ou que tudo o que ele diga seja lei. Na verdade, muitas vezes não concordo com o que lhe sai da boca. Mas daí a achar que ele não deve dizer o que pensa vai um grande passo...

Vasco Pulido Valente escreveu isto, como de costume com a sua caneta de ponta bífida.

Bom...

"Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia"

O Saramago tem tanta autoridade para opinar sobre a Bíblia como o Vasco Pulido Valente sobre o Saramago, o tratamento que lhe deu a comunicação social, as escolhas do júri do prémio Nobel e dos milhares de leitores 'saramaguianos'. Esse é um argumento vazio para mim.


"Claro que Saramago tem 80 e tal anos, coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara"

Este tipo de observações sim é uma autêntica saloiada. E o Vasquinho que se cuide... já está ali a roçar os 70, é bom aproveitar a lucidez que lhe resta, a qual, segundo o seu próprio raciocínio, já se vai esvaindo.


Numa coisa concordo com ele, embora não pelas mesmas razões: não se desculpa que o país, supostamente laico e livre há muitos anos, se escandalize tanto com as opiniões do Saramago. No entanto, o que eu entendo é que o escândalo não vem exactamente da sua opinião (que já ninguém deve saber repetir), mas sim do facto de ele se atrever a criticar a Bíblia, com todo o excesso a que tem direito. Podemos ser maioritariamente cristãos (eu incluo-me no saco), mas isso não nos dá o direito de acharmos que a Bíblia é sagrada para todos. Na verdade, para alguns é só um livro. Quando alguém critica o Corão ou o Cadomblé ou a IURD ou mesmo o Professor Bambo, intocáveis para tantos, não é esta escandaleira toda... Isso é, para mim, o mais perigoso e um sinal de que ainda há muita estrada para andar. Se sentirem estranhos calafrios pela espinha acima, suspeitem: o fantasma de Natais passados paira por aí.

4 comentários:

Anónimo disse...

(Este vai aos bocados) 1. Antes de mais, happy to have you back (considerando o teu post anterior, mais que tu), Clara. Agora, aos assuntos sérios. Saramago e a Bíblia (ou, ao que julgo saber, Saramargo e o Antigo Testamento): estou contigo, em achar ridícula a polémica. A Igreja Católica portuguesa não foge à regra que se aplica a todas as instituições portuguesas, ou quase (pode haver excepções; se sim, não sei quais serão) as instituições portuguesas, dos partidos à imprensa, das universidades às empresas: desde as figuras de proa aos "operacionais no terreno", tacanhez, mediocridade, ignorância, soberba, incompetência são a norma (aplica-se o parêntese anterior). De cardeais a curas, a igreja é uma vergonha - tal como seria de esperar num país improvisado.

Anónimo disse...

2 – O Saramago... Só li um, e bastou-me (o ensaio sobre a cegueira) e, graças a deus. Primário na alegoria (ao pé dela, a do filho pródigo é uma obra-prima de subtileza), de uma rigidez cadavérica da prosa, risível nos diálogos, pueril na construção, absurdo nas ambições... Saramago, o profeta, não ficaria mal entre as dezenas de profetas menores do AT. Quanto a este, há partes dele que conheço menos mal por razões de ofício. Não vou falar da beleza do génesis, do êxodo, do cântico dos cânticos ou do eclesiastes. Também é inútil dizer que episódios como os do dilúvio, de abraão, sara e agar, daniel, jonas, david, betsabé, s & g (sodoma e gomorra) e tantos outros são o material das epopeias, nuns casos, das mil e uma noites noutros. São literatura – arcaica, arquetípica. Serão religião? Para cristãos, judeus e muçulmanos (up to a point) sim. Para mim,não – nada o é.

Anónimo disse...

3- Valerá a pena tentar demolir o decálogo? Valerá a pena tentar ridicularizar a criação? Por favor, quantos gigantes (e anões) o têm feito nos últimos quinhentos anos... Valerá a pena apontar as inconsistências, mesmo a nível da(s) ética(s) proposta(s), e escandalizar-se com o que é prescrito e proscrito? O Saramago acha que sim; acha-se um Prometeu afrontando o Padre Eterno. O padre carreira das neves (o nome é tout un programme) e o beatério nacional escandalizam-se. Os jornalistas saboreiam a polémica (agora substituída pela do Jesus – o do Benfica, não o outro – e os seus quatro dedinhos) e promovem debates e frente-afrentes. A editora do S e a mulher dele agradecem (a ele, os euros suplementares pouca diferença virão a fazer). O resto do mundo (da BBC ao New York Times) por nada deu. É natural. Who gives a fuck, in this day and age, com o mundo à beira de meia-dúzia de precipícios (passe a implausibilidade da imagem), por um Nobel português (medíocre, tanto como o Egas Moniz era sádico), ex-controleiro do Partido, pensa sobre a Bíblia?

P.S.: Eu, Cobra, gostava de saber o que S. pensará do Alcorão. Suponho que as suas reflexões serão publicadas postumamente....

Anónimo disse...

E ainda a velha cobra: as desculpas pelos ocasionais erros de sintaxe, ortografia e pontuação. Os leitores inteligentes farão as devidas correcções...