Eu no metro e ela ao meu lado. Ploc ploc. Com um daqueles casacos de plástico enchido que deviam ser proibidos. Porque é que as pessoas gostam de andar na rua como se estivessem enroladas num endredon? E a música muito alta, mas não alta o suficiente para eu entender qual é. Apenas o volume necessário para que eu ouvisse o ritmo, só o ritmo, meio hip-hop, meio kizomba, um ritmo que me fez olhar para ela de lado e sobrancelhas franzidas. E ela "ploc ploc". A pastilha elástica a estalar dentro da boca. Incessante. Ploc ploc ploc ploc.
E eu a ler a mesma frase sem parar e sem conseguir avançar: "Virou-se para lançar um olhar à margem oposta". Um senhor senta-se à frente da mulher-edredon e vejo no seu subtil levantar de queixo que se arrepende quase no mesmo instante. Ploc ploc. Na minha retina "Virou-se para lançar um olhar à margem oposta" e tenho tempo para pensar que margem é uma palavra bonita e que o Natal está aí e quase não dei por ele e que o homem do livro se virou para lançar um olhar à margem oposta. E a outra, ploc ploc.
Aquilo já atravessou os ouvidos, já está no centro do cérebro, como um martelo, ploc ploc ploc. É aí que me levanto, me viro para ela, puxo-lhe os cabelos com madeixas duvidosas e lhe digo: "estala lá a pastilha agora, minha cara de cu vestida de colchão, estala lá se queres ver, puta!"
Fui Ally McBeal naquele momento. Abano a cabeça e pisco os olhos que nem por um momento se desviaram daquela frase e a rapariga, impávida e serena, ploc ploc, sai no Jardim Zoológico.
7 comentários:
Muito bom. Realismo mágico.
Infelizmente estamos em sintonia. Ontem também tive um desses momentos McBealianos, mas, já se sabe, não há cara de cu que se preze que não tenha amigos... E um enxerto de porrada não dá jeito nesta altura, logo quando uma pessoa tem de tirar fotografias junto à árvore de Natal!...
Não tenho tempo senão para dizer que está fookin' brilliant, este teu textinho (um textículo, dir-se-ia em registo culto). Invejo a forma, partilho por inteiro - estamos na época própria para partilhar - o sentimento. É por coisitas destas que, ocasionalmente, aquele gajo bem-educado e simpático (ou menina idem) mata meia-dúzia de pessoas que não conhecia de lado nenhum... Ploc ploc ploc do snake.
Merry coiso (é natal, ninguém leva a mal).
Só eu é que nunca tenho momentos à Ally McBeal... :( Será que é por ser um desbocado que diz tudo e depois se arrepende (ou não)? Este teu texto lembrou-me o Chicago... o Cell Block Tango... A primeira das prisioneiras matou o marido com uma caçadeira... "If you pop that gum one more time... and he did...". Mas se calhar sou eu que vejo musicais em todo o lado da vida. I'm becoming a cliché! Love you. *
e isso fica amoroso em ti, my dear *
Esqueci-me só de acrescentar que, após o momento mcbealiano, a série que me assombra o espírito é mesmo o Dexter... (nem todos podem ser amorosos como o Provocador... ;P)
Eu volta e meia fico com essa do Dexter na cabeça... Parece que às vezes tenho de me obrigar a ter determinados sentimentos porque sei, intelectualmente, que são aqueles sentimentos que devo ter no momento. Mesmo que no meu íntimo honesto não mos apetece ter! Sou só eu?
Enviar um comentário