segunda-feira, 22 de junho de 2009

Livre



Lembrava-me sempre de ti quando ouvia esta música. Tu, todo vestido de preto, eu, sempre de branco, mas entendíamos-nos, ou não nos entendíamos mas gostávamos disso, das perguntas e respostas, o desafio de tentarmos perceber-nos. E eu queria ser tua namorada, mas tu não querias ser meu namorado. Convidavas-me para tudo, tomávamos café, bebíamos cerveja, apresentaste-me a tua casa (mesmo perto da minha, que boa descoberta), o teu cão (um cão-de-água preto, lindo), conhecia a voz da tua mãe ao telefone e ela sabia o meu nome. E nunca quiseste ser meu namorado. Já querias proteger-me naquela altura? Fui eu que quis conhecer-te, lembras-te? Naquela escola de barracões de madeira e ambiente leve, leve, todos nós amigos. Gostava do teu ar soturno, do teu andar calmo, de como enrolavas os cigarros, do sorriso irónico que consegui arrancar algumas vezes à tua cara triste.
Eu gostava mais deste álbum, porque era mais melodioso. Tu preferias outro, não me lembro bem qual, o Eternity ou o Silent Enigma, mais pesado. Não sei. Os Anathema (única banda metal de que alguma vez gostei) uniam-nos. Uma vez deste-me uma fotografia (ainda lá está, numa caixa de metal)e escreveste por trás : "para quê viver, se amanhã morrerei?" Eu fiquei zangada, queria era uma dedicatória (para a Marta, gosto de ti, assim qualquer coisa). Mas tu escreveste aquilo, negro como o teu cabelo comprido.
Depois as nossas vidas seguiram rumos diferentes. Eu soube de ti algumas vezes, mota, namorada louca, hospital, psiquiatra. Já não estavas na minha vida, fazias parte apenas da minha memória. Um dia, foi a minha mãe que me ligou,

- Marta, lembras-te daquele rapaz, o D.?

E eu soube logo o que ela me ia dizer. Só precisava de saber como.

- Foi na ponte. Atirou-se.

Assim mesmo: atirou-se. A minha surpresa foi nenhuma. As memórias assomaram todas de repente, a roupa preta, tu no meu sofá, eu a fazer festas ao teu cão, as imperiais, os cafés, os cigarros que fumavas, o fumo teu que eu fumava, os meus 16 anos vestida de branco (sempre de branco e rosa), o pentagrama que queimaste na perna (disseste-me, nunca o vi), os Anathema, aquela música, "i want you to be free of all the pain", e tu agora finalmente livre da dor. Chorei.
Não pude ir ao funeral que te fizeram, depois de finalmente te encontrarem (pensei nos teus pais, na tua irmã, no teu cão). Ainda bem. Tu naquela altura existias ainda vivo na minha memória. Como hoje, na minha memória. Lembro-me de ti vivo sempre, sempre!, que oiço aquela música. E noutras alturas aleatórias, como hoje de manhã.

6 comentários:

Anónimo disse...

a menina Clara já teve quantos namorados? Luís

Marta disse...

aqueles que a vida lhe ofereceu.

Jota p\ extenso disse...

Esse texto tem ritmo de coração.

ana cláudia disse...

*

Anónimo disse...

Estive para deixar um comentário igual ao da Bipa: este é outro daqueles teus textos que convidam ao silêncio mais que a encómios (e muito mais ainda que ao humor descabido do anónimo-nónimo lá de cima...). Opto pelo elogio (mas abstenho-me de adjectivar). O D. é assunto pessoal, mas já conheci a minha quota de D's (e D'elas), e conheço bem (demasiado bem) o que leva as pessoas a sonhar com sítios altos...

Anónimo disse...

Fiquei anónimo por lapso. Ego culebra sum. E acabo de descobrir que morreu o Michael Jackson. Mesmo quando tinha idade para isso (há 25 anos) and didn't know better, nunca foi a minha chávena de café. Depois de ter estado no topo do mundo, o Michael cumpriu todos os estádios da decadência, até acabar transformado na grotesca caricatura que alimentou o humor (negro e depois indeterminável) de meio mundo; agora parecia estar prestes a fazer um comeback (entre a nostalgia e o oportunismo) tipo abba... Há uma crueldade fora do comum nesta ironia... E como julgo que gostavas dele, resolvi desabafar contigo. Paz à sua alma.