sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Who the fuck is David Motta?

Ele chegou vestido de preto (um olhar mais atento apercebe-se de que a roupa é invulgar) e chinelos. Disse: "já venho maquilhado. Só preciso é de calçar os sapatos e de me arranjar". Sorriso aberto, um tom de voz educado - cumprimentou quem com ele se cruzou e não olhou ninguém de alto a baixo. Sentou-se no sofá da sala de produção, disse "o meu cabelo deve estar terrível", calçou uns sapatos de mulher, pretos e de vertiginoso salto agulha. Concentrado em si, calçou as burlescas luvas pretas rendadas e colocou, um por um, escolhidos, e bem a propósito, a dedo, vários anéis. Bastava olhar de relance - o brilho mostrava que não eram bijuteria plástica.

Chegaram os outros, estes já todos compostos. Filipe, rapaz moreno e alto, bonito, apesar do ar ainda adolescente (ou talvez por isso mesmo) vinha de calças amarelas e a mesma simpatia e educação. Coco, portuguesa e irlandesa, de vestido preto, curto a deixar ver as pernas de quem foi modelo, enfeitado a disfarçar a barriga de quem já não é. Ela sim, adolescente, com brilho nos olhos, sorrisos despropositados, o cabelo muito longo e muito loiro, sempre despenteado. Havia mais: a menina morena de cabelo inclinado para um dos lados, com duas cruzes de tape preta sobre os mamilos, muitos colares de pérolas e um casaquinho preto que tirou só quando estava fora do ar ("se a minha mãe me visse assim"); um rapaz muito magro e alto, de fato prateado, tão parecido àquele das paredes ("mas o Marco Horácio compra os dele em Londres; nós compramos nos chineses") e uma máscara que, descobre-se mais tarde, esconde uma cara bonita; perucas, óculos grandes e extravagantes, um leque de penas que estive quase a levar para casa, saltos altos em pés de homem.

Entraram no estúdio, sentaram-se no sofá branco e falaram. Do grupo que criaram e a quem chamaram MAD Subculture. Das festas loucas que organizam. Das festas mil vezes mais loucas a que vão em Londres, Nova Iorque, etc. Do merchandising que criaram para o grupo. Fala o David de um estilista português que ninguém conhece. Fala o Filipe do prémio que ganhou, do mestrado que quer tirar. Fala a Coco, misturando inglês e português, do castigo que os pais lhe impuseram - ficar com eles na Madeira - e apela a que a deixem voltar para Lisboa. Desvendam que querem animar Lisboa, incentivar as pessoas a vestir roupas loucas, criar uma subcultura inspirada no exagero, na extravagância.

Em volta, percorrendo o estúdio, ouve-se: "olha-me aquele paneleiro; olha-me a gaja que não tem cuecas de certeza; olha-me aquele atrasado mental de saltos altos". Como ouve David Motta de cada vez que sai à rua vestido de forma extravagante - normalmente com coisas como usam as estrelas que tanto admiramos "lá fora". E eu (e, felizmente, não só eu), a espumar de raiva com tanta mente fechada, com tanto pensamento parado no século XIV, com tanta pedra em vez de cérebro.



Os miúdos organizam festas, criam blogues, criam roupa - fútil, dizem. Pergunto: e vocês, aí sentados, vocês gritam 'paneleiro' a qualquer cor mais viva, criam o quê? Raízes no sofá? Quantos miúdos daquela idade, agarrados ao Hi5 e à playstation, fazem coisas saídas das suas cabeças, sejam elas o que forem?

Pensamos no Andy Warhol na sua Factory e quantas vezes ele ouviu "olha-me este panisgas a pintar e filmar merdas que não interessam a ninguém! vai mas é trabalhar!". Mas a verdade é que são estas pessoas que ficam na memória - as pessoas diferentes. Ainda vivemos num mundinho cinzento ou, para ser mais exacta, num país cinzento, em que se quer que toda a gente vista de jeans, que as meninas só se ponham em cima de saltos em ocasiões especiais, que se seja heterossexual, que se tenha um trabalho normal, que toda a gente se case e tenha filhos, que só se saia à noite até uma certa idade - principalmente, que não se dê nas vistas.

Eu chamar-lhe-ia mente fechada.

Perguntaram aos "burrinhos, fúteis, maricas" David, ao Filipe e à Coco: "como é que uma pessoa tem de se vestir para ir a uma festa vossa? por exemplo, a Dona Helena podia entrar?" [para quem não sabe, a Dona Helena é uma senhora da limpeza, já entradota, que anda de bata verde]. Ao que eles responderam: "porque não? o que nós defendemos é que cada pessoa vista o que quer, calce o que quer, seja como quer".

http://www.madsubculture.com/
http://escarradordedavidmotta.blogspot.com/

7 comentários:

ana cláudia disse...

vamos para barcelona?? ;)

Ela adormecida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Sem internet fora no job há quase duas semanas, fui ainda assim espreitar o escarrador. É féxon, é hiper-hiper-hipercool. Pareceu-me também quase caricaturalmente vazio que não de modelinhos e modelinhas (e gurus do biz - anna wintour et al). Há 40 anos, em pleno delírio-todos-juntos-vamos-mudar-o-mundo hippie, a Factory era uma constelação que irradiava luz negra (e escarrava muito lixo sem préstimo, a começar pelos filmes, especialmente os do morrissey): era verdadeiramente subversiva. Pareceu-me que só no contexto da pasmaceira nacional é que a extravagância deste grupo passaria por remotamente inovadora ou criativa. Quanto a a D. Helena entrar na festa senão como bombo, tenho as minhas dúvidas. Mas, sendo quem sou - a cobra - nada que surpreenda.

P.S.: o teu texto, no entanto, está soberbo (desculpa o pretensiosismo do adjectivo, e o de todo o comentário). É a diferença entre ser cool e ser.

Anónimo disse...

Nada contra a extravagância, eu próprio me visto de forma menos convencional.. O que não compreendo é o deslumbramento do autor deste texto por estes jovens, em relação aos quais nada tenho contra. O que eles estão a fazer não tem nada de novo, nada de extravagante. Só mesmo neste país pequenino e retrogada.. Ser inovador é fazer algo novo..é bastante facil perceber que estes miudos querem ser uma coisa que não são.. diria, morangos com açucar versão baile de mascaras. PEace:)

Faby disse...

Adorei ler! Fantástico! Revejo-me por completo na mensagem...

esgana disse...

Já tinha saudades de um bom texto depois de 20 e tal dias de férias. Tive pena de não ver o programa.

Beijos!

Anónimo disse...

Clara, muitos parabens pelo texto e pela opinião, não podia estar mais de acordo. Muita mente fechada neste pais...
Sou seguidora e fã do blog!! Este texto está brilhante!
Parabéns.