quinta-feira, 5 de março de 2009

Um buraco escuro

Clara veste mini-saia com renda e uma flor, meias pretas e botinhas de Peter Pan. Na mão, varinha mágica oferecida pela Gema.


Para voar, diz o Peter Pan, é preciso apenas pensar com muita força numa coisa de que gostemos muito e que nos deixe felizes. E, claro, uma pitada de pós de perlimpimpim da mimada, irascível e adorável fada Tinkerbell (Sininho, aqui para nós). Fecho os olhos e penso em festas de anos com bolo, velas, croquetes e a família toda. Penso em dias de praia até às 9 da noite. Penso em viagens com as amigas. Penso com força e agito a varinha. Os pés não saem do chão.


Alice, morta de tédio e curiosidade, entrou num buraco escuro, atrás de um coelho atrasado de colete e relógio de bolso. Alice cresceu, encolheu, bebeu chá com uma lebre maluca e um chapeleiro louco, falou com gatos e lagartas, navegou dentro de uma garrafa, jogou críquete com flamingos, conheceu uma Rainha de temperamento tempestuoso, a quem, obviamente, ofendeu. Alice acaba no banco de réu de um louco tribunal.
Se fosse hoje, a Alice teria de pagar um balúrdio para se sentar 5 minutos numa casa de chá a beber água quente com folhas. Os líquidos e biscoitos de crescer e encolher seriam vendidos a preço exorbitante na farmácia (e só com receita médica) e mais baratinhos no mercado negro, de onde não sairia saudável uma menina loira de sedosa pele branca. Navegar, só num cruzeiro, sempre um luxo, até aqueles no Tejo. Para conhecer a Rainha, teria de chegar à fala com o assessor do assessor do assessor, explicar muito bem o que queria e talvez daí a 3 meses. A não ser que pusesse umas notas na mão do senhor da recepção, claro. Ofensa feita à Rainha, primeiro que chegasse ao julgamento, a Alice teria de aguentar uns bons e longos anos de prisão preventiva, tornada aborrecida a partir do momento em que a televisão se esquecesse dela. A não ser que pagasse bem aos senhores juízes.


Os pés continuam colados ao chão. Olho nos olhos do Peter de papel e digo-lhe: É preciso dinheiro para comprar bolo, velas e croquetes. A família precisa de dinheiro para a gasolina, o bilhete do autocarro ou a mensalidade do ginásio. Preciso de dinheiro para um carro, mota, gasolina, portagem ou bilhete de autocarro para ir para a praia. Preciso de dinheiro para tudo e mais alguma coisa para viajar com as amigas.
Pouso a varinha mágica. Fecho o livro do Carrol e o do Barrie. Tiro as meias e troco a mini saia rodada por uma mais justa. Descalço as botinhas de Peter Pan e trepo para os saltos altos. Saio de casa e vou à procura de um homem rico com quem casar.

Até já.

2 comentários:

Ela adormecida disse...

Descalça-te, meu bem... bem sabes como é bom andar descalça :P

Temos de nos sentar no chão da casa da Gema e escrivinhar as nossas ideias / projectos. Para quando marcamos os brainstormings? :D *

Jota p\ extenso disse...

Tu desculpa, mas na versão que eu li, também era preciso abanar os ombros.
Se não abanas os ombros, como esperas voar?

"Grown-ups...."