Estavam sentados lado a lado, no comboio. Conversavam com o desapego ao caminho de quem está habituado a fazer a linha de Cascais. Não podia ser a primeira vez: não seguiam o mar com olhos, pela janela, e a idade já não admitia muitas primeiras vezes. Tal como naqueles filmes em que o Danny De Vito faz de vilão, o líder era o mais baixo. O Senhor que Sabia Tudo.
Penso que lhe chamam monólogo dialogado ou coisa do género. O Senhor que Não Sabia Nada, mais alto, mais magro e de voz suave, dava o mote. O Senhor que Sabia Tudo respondia, discordava e ensinava na sua voz de megafone. Nunca perguntava.
"Devias ter ido logo tratar disso. Mal a médica te desse o papel, ias logo lá. Já passaram nove meses!", ralhava. Senti atrás de mim o embaraço infantil do Senhor que Não Sabia Nada. "Se me tivesses dito logo... Passou-me." Este era um bom mote de que o Senhor que Sabia Tudo não precisava. Afinal, de uma maneira ou de outra, chegaria a parte mais importante da conversa (ou não fosse ele um ser humano, já velho demais para imposições morais do super ego): "e eu disse-te! Tantas vezes! Fartei-me de te dizer!". E se não disse, ficou dito agora, alto e sem pudor nenhum. Quem tinha razão era ele.
Ouviu-se novamente a voz de trovão: "tanto espaço, tanto espaço e as pessoas todas encaixotadas em prédio enormes. Em vez de construirem coisas mais baixinhas...". "Mas também não se pode construir em todos os espaços...", soprou timidamente para a minha nuca o Senhor que Não Sabia Nada. "Não! Aqueles caixotes enormes, aquilo nem é qualidade de vida. É como no Brasil. No Brasil ainda é pior, vê-se nas novelas." Provavelmente, os dois Senhores só tinham chegado ao Brasil através das novelas, mas um, mais esperto, sabia que era mesmo assim como se via na televisão. Devia ter lido nalgum lado.
Levada por estes pensamentos e pelo livro que tinha nas mãos, perdi o fio à meada. Desperto com palavras cuspidas com autoridade: "Tem de se fazer logo as coisas! Então nesta idade... Não podes deixar tudo para o dia seguinte. Isso não é vida... é deixa andar, é preguiça!" A sabedoria espalhava-se como fumo pelo comboio. E todos aqueles fumadores passivos, passivamente sentados, cabeças enfiadas nos jornais, nos livros, ou em si próprios, sem saberem o bem que a sua indiferença deixava escapar.
O Senhor que Não Sabia Nada já não respondeu. Afinal, que sabia ele? Ao menos, o paternalismo do Senhor que Sabia Tudo, sentado na coxia (certamente chegaria primeiro à porta na hora de sair), presenteava-o com o lugar à janela. Não sabia nada, mas era de si que o mar estava mais próximo.
3 comentários:
Eu gosto de comboios, por mil razões e mais uma: num comboio, todos os ouvidos soltam a veia voyeurista.
Gostei da conclusão. Para mim faz todo o sentido.
E isto faz lembrar-me de uma máxima kantiana... humm! Ora pois! Aquela da outra vez!! ;P
Ah! O Senhor que Sabia Tudo deve saber a resposta para o porquê de todo este frio! Embora cantar as Janeiras? *
Muito bom! Acho que o próximo capítulo desta hstória devia ser o cruzamento deste par com o Senhor que Sabia Mais ou menos (ou em alternativa o Senhor que Sabia Assim Assim)! *
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