segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Mãos frias

Tenho as mãos frias.

Nunca me largam, estas mãos. E, quando chega o Inverno, ficam ainda mais frias, geladas, às vezes quase de um roxo de mortas. Sei que estão vivas. Sinto o sangue passar, frio e lento como um cubo de gelo pelas costas.
Sei bem que estão vivas. Sei principalmente nos fins de tarde de segunda, quarta e quinta, quando as ponho a dançar. Conto um segredo muito secreto do ballet: os pés em pontas impressionam, mas são as mãos que comandam. São elas que têm o poder de transpôr o limiar entre o quase inacreditável equilíbrio e a mais aparatosa queda. É nelas que está a diferença entre a boa técnica e a arte. Esta nasce lá dentro, numa alma dentro da alma, um estômago mais fundo dentro do corpo, corre pelas veias, tão rápido que parece um espasmo, e só pára na ponta dos dedos. E é da ponta dos dedos que sai para quem vê dançar (nem que seja a própria bailarina no espelho) aquela onda invisível de emoção que faz arrepiar os braços.
Nestes fins de tarde, luto ferozmente com os pés, esforço as pernas para além dos limites, dobro as costas mais do que elas podem, às mãos... sussurro. Murmuro-lhes "aqueçam, aqueçam, aqueçam". No fim, às vezes, consigo que fiquem quentes. Mas depois...
Depois saio para a rua e passo a noite inteira e o dia inteiro de mãos frias, como agora.

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